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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

Todos querem um relacionamento, mas ninguém quer se relacionar

Não há nada mais natural numa espécie social como a nossa, animais políticos como escreveu Aristóteles, que eventualmente tenhamos algum desafio para nos relacionar com o outro, mesmo sem querer complicar a imagem desta frase, o outro em nós ou o grande outro, não, só o outro mesmo, aquele que não sou eu. Para começar o que quer dizer se relacionar com alguém? A palavra “relação” vem do latim “relatio” ou “relatus”, particípio passado de “referre”, que significa “levar consigo”, “reportar” ou “apresentar”; o prefixo “re-“ tem a ideia de “voltar” ou “repetir” e o verbo “ferre” significa “carregar” ou “trazer”. Então, a palavra “relação” tem a ideia de trazer algo de volta ou levar junto, fazer uma conexão entre elementos, quer dizer vínculo, interação ou associação entre pessoas, objetos ou fenômenos. Eu gosto também de outra definição que traz o sufixo “re-“ com a palavra “lação” de “laço”, do latim “armadilha” ou “cilada”, é golpe? Não, vai além, tem o sentido de amarrar, laçar algo, capturar, era muito utilizado no contexto da caça como forma de prender, capturar algo. Então se relacionar, ao menos etimologicamente, significa se conectar, se prender a alguém, se deixar levar e sempre “re-“ fazer o laço, dar vários e vários nós, se emaranhar no outro e o outro em você.


Ah não, mas eu sou um espírito livre, fiquei até sufocado de ver o significado de relação, sou mais eu, independente, do mundão, “eu sou de ninguém, eu sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, calma Tribalista, estou falando da nossa condição humana, aquilo que, para parecer mais inteligentes, os psicólogos chamam de filogênese, então a nossa natureza é a de nos relacionarmos. Somos compelidos a isto, nos relacionamos com o ambiente, por meio dos sentidos, por exemplo, você que está lendo agora está se relacionando com este texto, caindo na teia e se embaraçando de afetos, que Jung chamou de complexos, e nem percebe. Nos relacionamos com as outras pessoas, com as instituições, com o abstrato, com ideias, com a arte, com os afetos, nossa forma de interação com o mundo e por dentro é esta. Então a florzinha do campo não é tão independente dos laços quanto gostaria de imaginar. Inclusive uma das primeiras ideias da psicanálise é que cada um de nós só sabemos quem nós somos porque esbarramos nos limites do outro, só tem identidade, Ego, quem se relaciona, mas não pretendo complicar este texto.


De todas estas formas de relacionamentos que eu citei poderia escrever longos textos, a neuropsicologia se ocupa das relações humanas a nível neuronal, dos circuitos eletroquímicos do cérebro e de suas alterações; a psicanálise se ocupa das relações simbólicas do indivíduo durante o seu desenvolvimento, principalmente; a psicologia comportamental já irá se ocupar das crenças que criam distorções nos pensamentos e dificultam as formas de se relacionar; e para enfiar o dedo na ferida, porque assim como a Suzana Vieira, eu não tenho paciência para quem está começando, vou escrever sobre o mundo real adulto e seguindo o conselho do velho Jung, olhando para frente, de forma prospectiva sintética, aqui estou, adulto no mundo real, cheio de cabeço debaixo do braço e bafo de café e cigarro, o que eu preciso fazer com essa tonelada de lixo que me acompanha para conseguir me relacionar no futuro? O que vou fazer com o que fizeram de mim?


Vai ter trabalho viu, vou logo avisando, se relacionar com o outro, apesar de fazer parte da nossa natureza, ou seja, vai acontecer de uma forma ou de outra, para que aconteça de forma saudável e, como eu gosto de pegar emprestado de Jung, de forma evolutiva, precisamos de um esforcinho. Relacionar-se com alguém implica em entender e respeitar as perspectivas, emoções e necessidades dessa pessoa, ao mesmo tempo em que você também compartilha suas próprias vivências e sentimentos. Isso pode envolver demonstrações de empatia, compreensão, apoio e comprometimento mútuo. Só até aqui já deu para perceber quantos anos de terapia serão necessários? Pois é, somente pelo fato de que a gente só faz pelo outro aquilo que temos conhecimento e que fizemos para nós mesmos, você já sente empatia por você mesmo? Pela sua história de vida? Já acolheu o que achou que eram seus erros? Já sabe identificar, nomear e lidar com seus afetos? Então como vai fazer isto com outra pessoa? Ou vocês combinam de descobrir tudo isto juntos, numa jornada de autoconhecimento compartilhada e que dê muito espaço para o erro e o aprendizado, com muita humildade e consideração pelo outro. Ou então você só poderá se relacionar no exato dia anterior ao dia da sua canonização.


Isto quer dizer que amar alguém implica em saber que eu serei machucado? É claro que sim, senão não seria um risco, estou vendo aqui no meu Google Maps e ainda não estamos no paraíso divino, então estamos todos nos desenvolvendo, cada um em uma etapa de sua própria jornada, e como somos seres muito inteligentes nós aprendemos muito mais com os erros e temos a tendência de esquecer os acertos, quase passa em branco. Se relacionar com outra pessoa quer dizer correr este risco, mas também quer dizer cuidar para não ser o risco do outro, ou a princesa achou que só o outro pode machucar? Sem risco não tem relação, algo só pode dar certo se correr o risco de dar errado, uma coisa está contida na outra, só se pode confiar de verdade se houver o risco de traição, senão fica vazio o negócio. É claro que, da mesma forma que se pode ter este direcionamento pessimista também temos o lado positivo, se aproximar de alguém também implica em ter mais suporte emocional, mais oportunidades de crescimento pessoal, de trocas de conhecimentos e amplia nossa rede de conexões sociais e às vezes o nosso armário também. Eu gosto de uma fala do Jung que é assim: sozinhos o nosso caminho é mais rápido pelo desenvolvimento na vida, mas junto de alguém nós vamos mais longe nesta estrada.


Experimentar e compartilhar a conexão mental e de afetos com alguém é uma sensação de fazer parte do mundo, de continuidade, de pertencimento, isto estimula liberação de hormônios do prazer e da felicidade, aumenta nossa autoestima, melhora nossa comunicação e empatia, nos tornamos mais flexíveis e amáveis, respeitosos com o outro e comprometidos com o mundo. Para isto acontecer precisamos entrar em contato com as nossas vulnerabilidades, isto quer dizer que precisamos nos abrir emocionalmente, o que pode ser assustador, pois nos tornamos suscetíveis a possíveis feridas, novas feridas e é por isto que as pessoas se fecham e se protegem ao menor sinal de risco. Ah ele não me respondeu tão rápido então vou bloqueá-lo, ah ela falou estranho comigo, então vou enterrar qualquer afeto que estava sendo construído aqui, ah eu revirei as coisas do armário dele no mês passado e achei um anel caro de diamantes que ele ainda não me deu de presente então vou inventar um motivo para me afastar, específico demais né?


É importante olharmos para nossos traumas, os apegos, tudo que pode levar a dificuldades de comprometimento, de comunicação e negociação, dá até para aprender a técnica da comunicação não-violenta ou comunicação com compaixão, treinar a escuta ativa, a tolerância, a nossa adaptação e resistência a mudanças, a como lidamos com as frustrações e as expectativas que projetamos, nossa maturidade e empatia e trabalhar os medos que as feridas deixaram para nos relacionarmos de forma mais saudável. Está vendo só, quem é o tóxico da relação? É importante lidarmos com as idealizações que fazemos sobre as nossas relações, de sermos salvos de alguma coisa, de que vai aparecer alguém que finalmente me entenda e me leve daqui para onde eu mereço, que seja rico e dê chicotadas, alguém que me dê o amor que eu mereço, mas você se dá esse amor? Você se leva para o lugar que merece? Não existe príncipe encantado e muito menos uma gostosa encantada que vai te amar mais do que você ama a si mesmo. Algumas pessoas acham romântico isto né, mas é sintomático. 


Lidar com o real, com o cotidiano, com aqueles dias que a gente acorda feio, desgranhado e fedido, lidar com o mal humor um do outro, com aquelas pequenas manias das loucuras individuais, o lugar que coloca o prato sujo dentro da pia, o jeito que pendura a toalha de banho, como balança a perna quando está ansioso, qual travesseiro vai na perna e qual vai na cabeça, se o feijão vai por cima ou por baixo do arroz, o jeito que fala palavrão, o cheiro do cocô do outro, tudo isto que chamamos de intimidade é o que legitima os laços e fortalece a relação. Relacionamento é mais disto e menos de fantasia, por isto é importante a resiliência, a paciência com o outro, a visão do aqui e agora, sem padrões de perfeição intangíveis ou modelos inventados. 


Saber que o outro também pode ter medo, também pode ser imperfeito e também pode errar nos deixa mais tranquilos para correr o risco se acontecer o mesmo conosco. Todos nós somos seres humanos com falhas e virtudes. Relacionar-se verdadeiramente envolve aceitar as imperfeições e aprender a amar a pessoa pelo que ela é, em vez de tentar moldá-la para se encaixar em nossas fantasias. Isso não significa ignorar problemas sérios ou comprometer nossos valores, mas reconhecer que todos têm áreas de crescimento e que o relacionamento é um espaço para crescimento mútuo. Por isto é interessante que você conheça as suas fantasias quando entrar em um relacionamento, para que não as projete no outro e assim possa fazer um esforço consciente de construir uma conexão realista e saudável.


Então, para não cairmos na ideia dos amores líquidos de Bauman, de que as pessoas são descartáveis, ou você ajusta ao meu modelo ou cai fora porque tem milhões de outras pessoas, e sempre pode aparecer alguém melhor, ou porque minha “autoestima” é muito boa e eu não aceito menos que isto, mentira, disfarçado de autoestima está o medo, para não cair em nada disto precisamos refletir sobre a realidade dos relacionamentos, que estamos todos meio ferrados, meio machucados e somos todos meio tóxicos tentando sobreviver e tentando amar nesta sociedade da exploração, do cansaço e dos estímulos ao adoecimento. Todos querem um relacionamento, mas ninguém quer se relacionar e se relacionar significa abrir mão da fantasia e saber que vai ser difícil, dolorido algumas vezes, vai exigir algum desenvolvimento interno, insistência, paciência e tolerância, mas vale muito a pena pagar este preço, como Freud escreveu numa carta, “como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada!”.

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