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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

A história do amor e as relações poliamorosas

Será que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo? E será que a gente só pode fazer sexo com a pessoa que estamos nos relacionando amorosamente? E o que fazer com o desejo por outras pessoas? É possível estar com uma pessoa, numa relação saudável, e se apaixonar por outra? Bom, hoje eu escrevo mais um texto da série “balde de água fria” porque não falarei do amor de forma romântica ou filosófica, queria viu, ah se eu pudesse, mas destes eu tenho certeza de que você já está lotado, entupido até as tampas de fantasias e comédias românticas da pobre mulher loira que só queria um casamento com o dono a empresa e se apaixonou pelo feio, porém simpático amigo dele. Hoje escrevi sobre a construção histórica e social do amor e como isto nos levou a acreditar e agir conforme algumas crenças do que é amar e do que é viver com alguém, calma, não durma, é importante, porque muitas vezes nos sentirmos incomodados com estas imposições, mas quase não paramos para pensar o porquê é assim, quem disse e quem ordenou, spoiler, a maioria foram velhos de saia.


Aqui, quando eu digo nós, me refiro exclusivamente ao ocidente político e sua herança colonial, também remeto a filosofia ocidental, principalmente platônica e a chamada ética cristã a que estamos submetidos no sentido da maioria que define grande parte da cultura, do pensamento e do comportamento da sociedade. Claro que existem exceções e minorias que estão conseguindo ampliar suas vozes e aparecerem, estas que até então eram consideradas anormais, sujas e doentes, que eram excluídas, assassinadas e criminalizadas e até hoje o são. Em sua construção histórica e social, o amor traz consigo o entendimento de que deve ser vivido e sentido de acordo com algumas normas, ele deve ser romântico, patriarcal, cisgênero, heteronormativo, sem misturas étnicas, jovem e de monogamia compulsória, já percebeu que não é para todo mundo, né? Tudo o que foge a isto é anormal e errático, chocante e obsceno. Amores por conveniência, que não são para procriar, amores trans, homo e bissexuais, inter-raciais, poliafetivos e de pessoas com idades e corpos discrepantes. Um velho pode amar? Não na nossa sociedade. Quer um exemplo? Imagina a sua vovozinha fazendo sexo!


Recuperado da imagem celestial vamos continuar, percebeu que mesmo com o discurso “deixa as mina, pô” estamos impregnados de significados a respeito do amor e das relações amorosas? Existem regras para o amor que o imobilizam e atribuem definições a ele, são forças que se estabelecem socialmente e geram mecanismos que controlam a sexualidade e os corpos das pessoas definindo quais são as possiblidades de amar e quais não são. Por exemplo, existem corpos que são mais fáceis imaginar num contexto sexual do que outros, isto define que roupas podem ser usadas e quais comportamentos se pode ou não ter, a diferença entre o Henry Cavill transpirando de regata e o Fausto Silva na mesma situação, oh louco bicho! Assim o amor é socialmente construído, é um produto e reflexo de sua época e de sua sociedade, nós amamos o que é permitido pelo zeitgeist, o espírito da época, você já se deparou com aquela ideia dos padrões de beleza que mudam conforme o tempo e que na idade média o corpo gordo era sensual porque denotava riqueza e prosperidade, então o tesão, os hormônios do prazer eram liberados em face daquele corpo, hoje não são, hoje são os corpos magros, lisos e secos aparecendo músculos hipertrofiados mergulhados em óleo que causam furor. Isto me lembra a Miranda Presley (Meryl Streep) no filme “O Diabo veste Prada” quando ela fala para sua assistente Andrea Sachs (Anne Hathaway): “é engraçado que você pense que escolheu algo que a liberta da indústria da moda quando, na verdade, está vestindo um suéter escolhido pelas pessoas desta sala”, o mesmo vale para o amor, escolhemos o amor tendo como influência o que o pensamento da época diz que é certo, natural e bonito. E isto define o corpo que queremos ter, o comportamento e as pessoas que vamos nos relacionar ou dar uma chance. 


E você que não aceitou esta escolha pré-definida de amor para sua vida sabe bem o preço que paga por isso, ou seja, se você não for uma pessoa branca, heterossexual, cisgênera, monogâmica, que acredita no amor romântico patriarcal, isto é, a promessa de único e grande amor da vida para casamento até que morte a separe e virar dona de casa, de encontrar a alma gêmea, se depilar todos os dias e estar sempre numa dieta de emagrecimento, está lascado. Seu amor vale menos, sequer têm direitos de relacionamentos reconhecidos socialmente, não poderá visitar seu amor no leito de morte porque não entra no hospital se não for da “família” e nem herdará os bens que conquistaram juntos, essa ainda é a realidade de muitos, apesar das conquistas de direitos civis pelo mundo. Não precisamos ir tão longe, veja só, precisa cumprir todos os requisitos, você pode ser até heterocisnormativo branco e pouco machista, mas se o amor não for apenas para procriação já estará fadado a eternidade nos mármores do inferno, o prazer é luxúria, se teve orgasmo deve pedir perdão e se arrepender, se sair da posição “papai-mamãe” acabou para você, assim como o divórcio é o fim do mundo, quem é você para separar o que Deus uniu? Aguente o traste, aguente a violência, aguente o abuso!


Historicamente, o amor transitou da idealização para a vigilância, para a ridicularização, e retornou à idealização. Inicialmente, na Idade Média, o amor cortês, trovadoresco, ideal e inatingível, foi a primeira manifestação do amor como relação pessoal, daí que veio o gesto de circunflexão perante o outro carregando um símbolo do infinito, um círculo, o anel. No Renascimento, se fortaleceu a vigilância moral e o casamento como negociação e o amor ganhou uma tentativa tímida de associação entre espírito e matéria, por meio da popularização do ritual do casamento religioso.


Na Idade Moderna, Igreja e Medicina procuraram separar amizade, direcionada ao casamento, e paixão, próxima à loucura e ao adoecimento, gosto da definição de Calligaris da paixão, que é amor com medo, a desorganização neuronal ainda hoje faz com que neurocientistas definam paixão como doença. O amor, com o despertar do Iluminismo, passou a ser vinculado ao ridículo, ante um mundo que deveria ser voltado à razão, algumas pessoas ainda estão nesta fase, né, tratam o amor como besteira, sou mais eu. Desse período, o amor retornou à idealização, ao amor romântico, no século XIX, que se transformou em um fenômeno de massa na primeira metade do século XX, ambicionado por todos até os dias de hoje.


Já podemos dizer que no século XXI o amor tem sido objetificado pelos meios de produção e se tornado líquido pelas tecnologias, temos acesso a todos os habitantes do planeta na palma das mãos, então todos se tornaram descartáveis, porque quem sabe o próximo que aparecer não é melhor, não é mesmo? Mas a lista não tem fim, o príncipe está cada vez mais na idealização e nos afastamos da realidade concreta das relações, o amor perdeu o corpo e se tornou plástico, qualquer defeito eu jogo fora e troco pelo modelo mais novo.


O amor romântico surgiu no século XIX como uma possibilidade de libertação, o romantismo emerge da literatura em contraposição à racionalização excessiva pregada pelo Iluminismo. Se na Idade da Razão os homens consideravam o amor um passatempo, uma prática de sedução indispensável ao cortejo das mulheres, no século XIX os homens passam a considerar o amor uma finalidade nobre da vida, nascemos para amar! Os romances literários propõem novos sentimentos, em que a escolha conjugal é condição para a felicidade, você escolhe com quem vai se casar e escolhe alguém que ama, o que também responsabiliza unicamente a pessoa que escolheu por qualquer infelicidade ocorrida no relacionamento, o amor passa a se tornar problema pessoal e não mais comunitário. Fala-se de amor poeticamente, transferindo-se a admiração da mulher exuberante para a mulher virginal, constrói-se o mito de um amor doméstico, puritano, casto, controlado e cauteloso, sob medida para a classe média e possível para todos. Além de puro, o amor romântico é também vitorioso, vence, inclusive, o interesse econômico dos casamentos. Até então, a sobrevivência era o que sustentava o casamento e a família, agora se vive apenas por amor. 


O mito do amor romântico, como relação estável e duradoura, é moldado no ideal da família burguesa e determina o papel que homens e mulheres devem desempenhar no romance. Enquanto aos homens novas oportunidades e posições de poder se estabelecem, às mulheres novas normas as submetem à vigilância moral. Os estereótipos de gênero são, assim, reforçados. Sustentado pelo ideal da família burguesa, o amor romântico fragiliza a mulher e reforça o papel do homem como patriarca, os homens passam a ter o direito de escolher sua noiva, as mulheres devem preservar sua castidade, aguardando, ansiosamente, pelo homem que irá salvá-la. Daí o sucesso dos contos de fadas, em que as mulheres são salvas ou melhoram de vida por meio da relação com um homem, também vemos muito disto hoje em dia, né, quem nunca ouviu algo assim, vai encontrar um marido rico, vai achar alguém que te tire desta vida… A virgindade se transforma em um objeto de valor econômico e político, elevando o status da noiva, dessa forma, se impõe à mulher a monogamia compulsória e a família monogâmica garante a transmissão da herança gerada pela acumulação de bens do sistema capitalista, isto quer dizer que o homem escolhe a mulher virgem para ter certeza de que o filho será seu e assim poder passar sua herança, garantindo que a riqueza permaneça concentrada, isto contribui com a ideia de que a mulher é posse do homem, privando-a de liberdade e autonomia sobre a sua vida.


Essa família nuclear monogâmica é considerada o símbolo da felicidade amorosa na primeira metade do século XX, quando o amor toma grande importância. A velocidade das modificações sociais, após a industrialização, gerou insegurança e o amor foi elevado ao status de cura para todos os males. O casamento de conveniência passou a ser considerado vergonhoso, o que permitiu agora também às mulheres a liberdade de escolha, e o amor passou a ser não só um ideal romântico como o cimento da relação. A partir da década de 1940, estima-se que a maioria das pessoas já se casava por amor. Com isso, se intensifica a convicção de que, para cada indivíduo, existe a pessoa certa à espera de seu encontro, reforçando a ideia platônica de encontrar a outra metade da laranja, o que ele chamou de alma gêmea, a parte que foi separada de todos nós do humano perfeito que foi divido ao meio por Zeus. O amor se estabelece assim como um ideal a ser alcançado, uma busca eterna pelo “felizes para sempre”.


O final eternamente feliz, entretanto, não era para todos. O amor romântico é heteronormativo. As representações sociais do amor romântico estão vinculadas à família nuclear burguesa que é heterossexual. Até os anos 1960, os homossexuais tiveram de manter seu amor nas sombras. Foi apenas após a revolução sexual dos anos 1960 e 1970, contra a repressão e a favor da liberdade sexual, que as relações homoafetivas ganharam espaço na luta pelos seus direitos, visibilizando-se. No Brasil, o movimento homossexual surgiu no final dos anos 1960, sendo que a homossexualidade deixou de ser considerada como “desvio” somente em meados dos anos 1980, quando retirada do Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders III.


Ao questionar a sexualidade e dar voz aos menos visibilizados, a revolução sexual da segunda metade do século XX permitiu o questionamento de algumas normas do amor até aqui atuantes. O casamento deixou de ser visto como uma decisão eterna, de forma que o divórcio de tragédia se tornou a resolução do problema de não ter sido bem-sucedido na escolha do cônjuge. O divórcio, por sua vez, modificou alguns papéis de gênero, a inserção da mulher no mercado de trabalho e o advento da pílula anticoncepcional permitiram liberdade financeira e sexual para a mulher, que ganhou maior autonomia para suas decisões. No final do século XX, o amor romântico, apesar de ainda almejado, mostrou sua face fugaz, podendo ser vivido de forma provisória.


Se as mudanças sociais no século XX assustaram devido à velocidade em que ocorreram, no século XXI a tecnologia e a globalização aumentam ainda mais a velocidade dessas mudanças. Com tantas opções de vida, os objetivos dos indivíduos se dividem entre a liberdade, a estabilidade e a incerteza, será que eu quero amar ou apenas sobreviver, pagar as contas ou conhecer pessoas, casar para dividir as despesas ou ficar sozinho para ter menos boletos? O amor romântico começou a sair de cena, levando com ele a ideia de exclusividade. Entre as diversas alternativas que surgem, emerge a possibilidade de se amar e de se relacionar sexualmente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, o que chamamos de safadeza? Não, nesse contexto, surge o poliamor, colocando o amor como centro das relações afetivas, nasce do entendimento de que o amor não pode ser forçado, direcionado ou impedido de ser sentido, ele defende que é possível e válido manter relações íntimas com múltiplos parceiros simultaneamente, com responsabilidade afetiva, ética e com a concordância de todos os envolvidos.


O termo poliamor é importante para nomear relações que não se encaixam nas formas como o amor tem sido construído socialmente, não é monogamia, pois pressupõe a relação com mais de um parceiro; mas também não é necessariamente contrário a seus princípios, pois o construto principal da monogamia, a fidelidade, pode fazer parte do contrato. Por outro lado, o poliamor também não deve ser comparado à poligamia, pois não pressupõe assimetria de gênero. A família monogâmica tradicional apoia-se no patriarcado, que coloca o homem como centro e oprime a mulher, determinando os papéis sociais de predomínio do homem, a quem se permite a infidelidade conjugal, até faz bem a imagem de “comedor”, e de tolerância e submissão da mulher, a quem a fidelidade era vigiada de forma rigorosa, “para não virar puta”. Já o poliamor defende um combate aos privilégios dos homens na vivência de seus desejos, abrindo a possibilidade para ambos, as relações do poliamor podem ser abertas, com possibilidade de novos envolvimentos, ou fechadas, em que os envolvimentos se restringem ao grupo, e são descritas, no Brasil, em três arranjos principais: “relação em grupo” – todos se relacionam entre si; (b) “rede de relacionamentos interconectados” – cada pessoa da relação tem outros relacionamentos distintos; e (c) “relação mono/poli” – casal em que um é poliamorista e outro não, por opção.


Vamos complicar um pouquinho a história, o poliamor se difere do swing em função de não se voltar exclusivamente para a dimensão sexual, sim, pois é, infelizmente ainda é preciso dizer isto, e também se difere do casamento aberto, por permitir mais de um vínculo conjugal estável e profundo, no casamento aberto há um vínculo profundo e outros relacionamentos sem vínculo afetivo profundo. Nos últimos anos, a expressão “relacionamento aberto” tem sido mais utilizada do que “casamento aberto”, alguns pesquisadores afirmam que, como o swing, o relacionamento aberto se caracteriza por um acordo do casal para estabelecer apenas outras relações sexuais e não interações afetivo-sexuais. Já as “relações livres” são o único conceito de não-monogamia originalmente elaborado no Brasil, mais precisamente em Porto Alegre, nos anos 2000. A sua formulação esteve articulada a grupos de militância e de discussão sobre família, feminismo e libertação sexual. Nas relações livres, os sujeitos são entendidos como autônomos para a expressão e a realização dos seus desejos afetivos e sexuais, podendo ter relações casuais ou criar laços duradouros, a despeito de seus outros relacionamentos. 


A conexão entre liberdade e neoliberalismo e também o crescimento de leituras feministas que atribuem à não-monogamia a opressão das mulheres fez com que muitos relacionamentos livres passassem a reconhecer a liberdade como uma noção problemática, assim compreenderam então que a liberdade não poderia ser exercida sem responsabilidade afetiva. Uma característica das relações livres se refere ao desacordo do uso do amor como meio de legitimação da sexualidade e da conjugalidade. Sexo e amor podem andar juntos ou separados em uma mesma relação, uma relação livre possui liberdade em ambos, é quando a pessoa mantém sua autonomia e plena liberdade pessoal seja lá qual for a relação sexual ou afetiva e em qualquer circunstância de estabilidade, assim pode ter vários graus de envolvimento emocional e inclusive nenhum com os indivíduos que se relaciona.


Por fim, falamos sobre polifidelidade, sim, o dever de exclusividade sexual aos parceiros reconhecidos e com direitos de ingerência nas possibilidades e opções de relação um do outro, assim, pode parecer estanho dizer isto para quem tem um contato primeiro com a ideia, mas é possível ser fiel a vários e várias numa relação amorosa. Percebe que são bem distintas as formas de se relacionar e de amar, de como o sexo pode não ter nada a ver com o amor ou tudo a ver, assim como o dinheiro, ou o corpo, ou as promessas de casamento, de ficar juntos pela eternidade, de dividir os bens, de fazer filhos, percebe como podemos amar várias pessoas e nos comprometer com todas elas ou com nenhuma delas de forma que mantenham íntegras e ética e a responsabilidade afetiva? Então se questione, quem manda no seu corpo, quem manda nos seus afetos, quem decide de quem e como você vai amar, se relacionar e construir a sua subjetividade, o seu sexo e a sua família. Todas as possiblidades são normais e naturais, basta se conhecer e se livrar das amarras culturais que, hoje em dia, só visam lucro, objetificação e robotização do ser humano, controle e aprisionamento das diferenças. 


Ame do seu jeito!


Fontes: Perez, TS; Palma, YA. Amar amores: o poliamor na contemporaneidade. Psicologia e Sociedade, v. 30, 2018. Pilão, AC. Ativismos não-monogâmicos no Brasil contemporâneo: a controvérsia poliamor – relações livres. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 38, 2022.

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