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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

Sobre a vergonha

Você já se sentiu envergonhado? Quando sobe a pressão, o rosto fica vermelho, vem a sensação de que todos estão te olhando e ficamos muito sem graça? Você já deixou de fazer alguma coisa para evitar se sentir assim? Deixou de usar alguma peça de roupa, de dizer algo, de perguntar para um professor sobre alguma dúvida, de dizer para o motorista do ônibus que não parou no seu ponto, de dizer que não come certo tipo de alimento para não passar vergonha? Será que você também já deixou de ser quem você realmente é por conta deste medo? Encobriu ou disfarçou características suas, ou desejos para evitar o julgamento alheio? Deixou de se divertir, de dançar ou cantar quando teve vontade, de dizer sim ou de dizer não, de assumir um compromisso com alguém ou de simplesmente dizer o que pensa?


Depois destes últimos dias de marcha para Jesus, caminhada transexual, lésbica, parada do orgulho LGBTQIAPN+ e Dia dos Namorados, tudo assim, seguidinho e misturado com dias e dias de quermesses com quadrilhas juninas, pensei em escrever um pouco sobre a vergonha, porque sei que muitas pessoas podem ter evitado participar de alguns destes eventos e se sentiram culpadas, ou não foi a manifestações que gostaria de ter ido, seja a religiosa, a política ou a social, como gostaria de ter ido, ou não assumiu a relação que gostaria de ter assumido com o amado ou amada (ou a amante) e comemorar livremente, se expor sem medo. Notei que, em muitas situações, isto vai além da discrição ou da introversão, que também existiram, mas é outro assunto, mas eu vi que muitas destas pessoas realmente queriam fazer o que não fizeram, algo as impediram. 


Isto vai além da culpa, talvez seja um bom ponto para iniciarmos, a diferenciação entre culpa e vergonha. Apesar destas duas emoções serem sentidas quase sempre juntas, a culpa pode ser vista como uma reação negativa a uma ação, um comportamento, portanto, que poderia ter sido revertido, e a vergonha como uma reação a um modelo existencial, ou seja, a interpretação que o indivíduo faz de uma situação. A vergonha também ganha papel de regulador moral nas relações interpessoais e intrapessoais, é uma emoção de autorreflexão baseada em valores pessoais e de outras pessoas. Charles Darwin foi pioneiro do estudo da vergonha no comportamento humano, ele descobriu que o ser humano é o único animal que ruboriza, de corar as faces, e que isto acontece por dois motivos: reflexão de si sobre alguma característica de aparência pessoal e preocupação sobre o que os outros pensam de você.


É claro que aqui temos um ponto importante para olhar, sendo a vergonha um regulador moral, precisamos ampliar de qual moral estamos nos referindo, regular a moral quer dizer agir como os outros, então a vergonha existiria para fazer com que as pessoas de determinada comunidade ou grupo tenham comportamentos parecidos, isto tem ligação com a sobrevivência da espécie, com as relações de pertencimento, que fazem parte do nosso cérebro mais primitivo, é verdade, apesar de ser um sentimento secundário (que precisa da consciência de si ou de alguma reflexão para existir), também implica em reprimir algumas vontades, desejos ou características individuais em detrimento do coletivo, como escreveu Freud em “O mal-estar na civilização”.


O fator de regulação é o que impossibilita sermos quem somos ou fazermos o que quisermos para evitar a vergonha, desta forma, não é algo tão positivo que a vergonha seja um regulador moral, tirando o fato de evitar relações aversivas com o meio, mas podemos começar a compreender que a questão está, acima de tudo, na moral vigente. Por exemplo, se o ocidente não estivesse esmagado pela moral judaico-cristã, as pessoas poderiam experimentar novas formas de amor não monogâmicas sem sentir vergonha, medo ou culpa pelos olhares externos.


Saindo um pouco das reflexões biológicas e sociais sobre a vergonha, vamos nos aprofundar um pouco nas psicologias que falam sobre o tema. De modo geral, a vergonha é resultante de uma diferença entre a imagem que se tem de si e a imagem real do sujeito para o outro. Calma, deu nó na cabeça? Vamos ampliar a ideia. Todos nós temos um simulacro existencial, ou seja, projeções e ideias de nós mesmos, de quem somos e das nossas qualidades e defeitos, cada um tem uma ideia pessoal de si, de quem você é, certo? Está imagem que temos de nós mesmos geralmente é fantasiosa, por mais que traga elementos do real, porque se trata de uma ideia que nos representa no mundo, mas costumamos nos misturar com esta imagem, nos identificar com ela e nos confundir. A vergonha aparece quando nos vemos diferentes da forma como somos vistos por fora, pelo outro, ou da possibilidade que esta imagem seja diferente.


Assim, a vergonha se configura no encontro de dois sentimentos: a inferioridade e a exposição. A inferioridade acontece quando o indivíduo percebe que não consegue projetar ou expor no real a imagem positiva que possuía de si e da indignidade que surge por isto e a exposição é sentida quando o indivíduo é visto por alguém que ele legitima, alguém importante para ele, se tornando vulnerável por submeter sua imagem ao juízo deste outro, que nunca julgará à altura, mesmo que seja uma visão positiva. O que isto quer dizer? Que a vergonha acontece quando a pessoa se incomoda com o fato de perceber que existe diferença entre quem ela pensa que é e quem os outros pensam que ela é. Você provavelmente já se deparou com este dilema: o que eu penso de mim e o que as pessoas pensam de mim. Quem sou eu para mim e quem sou eu para os outros. Sempre tem muita diferença.


Em outras palavras, a vergonha pode ser vinculada ao rebaixamento do ego, da autoestima, do autoconceito, como preferir, em situações que o indivíduo se sente humilhado pelo outro que legitima ou a exposição pública. Tem origem no fato da pessoa se fazer objeto do olhar, da escuta e do pensamento dos outros, se perde no individual e supervaloriza o externo. O que será que vão pensar de mim se eu fizer isto? Sendo assim, uma pessoa sem vergonha é aquela que ignora e despreza o juízo dos outros, não reconhece o controle moral externo, não considera condenável e aviltante cometer certos atos, talvez porque tenha autoconhecimento suficiente para não deixar afetar seu autoconceito com o julgamento externo. A resposta para a vergonha? Autoconhecimento.

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