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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

Responsabilidade afetiva

A maior enganação do milênio pela pseudociência ultracoach líder de vendas de cursos de autoajuda desde que inventaram o discurso de que se colocar mesa de sinuca no trabalho o ambiente se torna positivo. A pobre coitada da ideia foi tão desvirtuada que se tornou forma de controle e manipulação nos relacionamentos por pessoas que tentam evitar a todo custo a expressão de emoções verdadeiras, exposições e até modificações de suas dinâmicas, chegou ao ponto de ser usada como justificativa para projetar no outro a culpa pela origem, manutenção e piora de traumas e condições emocionais (que são multifatoriais, inconscientes, filogenéticas e culturais, sim, o problema começou desde que nos organizamos em sociedade, não foi o Cleiton que te deixou deprimida). Saiu do campo teórico e foi para o lado obscuro de uma militância que pretende silenciar e apagar o desenvolvimento de uma união entre pessoas, um tabu, não se mexa, seu irresponsável, meus afetos de cristal vão se quebrar por sua causa!


E tudo isto por uma simples razão, um erro de sintaxe, há que se ter responsabilidade afetiva, mas com estudo da belíssima língua portuguesa: COM o outro e não PELO outro. Quando você tenta se responsabilizar pelo outro você o carrega nas costas, eu digo tentar porque é impossível ser feito de fato, não tem como tomar para si como o outro irá reagir às contingências da vida, se a pessoa vai ter um surto, entrar numa crise, chorar ou sorrir frente a uma emoção, ou situação.


Gostamos de dizer né, olha só não vai ficar triste com o que eu vou te dizer, mas isto é impossível, a pessoa vai ficar como ela tem que ficar e você dizer isto não muda nada. Depende unicamente de sua estrutura psíquica, da organização de seus afetos, de como entende a vida, dos processos que já elaborou em terapia (ah, não faz terapia? Então não deveria estar se relacionando), de como percebe os acontecimentos, e nisto tudo não tem como alguém de fora controlar, ah agora você vai chorar, agora você vai sorrir. Não, isto depende de quem você é e das suas expectativas que tem e tudo isto é problema seu e de mais ninguém. Apenas melhore.


Agora, responsabilidade com o outro quer dizer ser claro, sincero e honesto com as coisas que se passam dentro de você, isto tem como fazer, dizer coisas do tipo, olha isto me deixou triste, ou não me sinto pronto para assumir um relacionamento no momento, ou o amor que eu tinha por você está se modificando, isto é o máximo que podemos fazer e este é o centro do que podemos chamar de responsabilidade afetiva. Algo que antes a gente aqui da saúde mental raiz que não posta foto de xícara de café costumamos chamar de comunicação, que daí pode ser comunicação assertiva, positiva ou não-violenta, a moda que você quiser seguir. Vou desenhar, ser responsável com alguém significa dizer o que se passa dentro de você da forma mais gentil possível, o que você sente e pensa sobre o outro e sobre a relação, quando pretende cair fora, quando está aumentando o sentimento, quando tem dúvidas, tudo isto, sem medo, simples. Queria que fosse.


Onde está o equívoco? Está em deixar de dizer como se sente ou até de viver algumas emoções com medo da fragilidade do outro e chamar isto de responsabilidade, pois não é! A partir do momento que alguém na relação precisa mentir ou omitir informações, que acredita que não poderá compartilhar certas emoções ou acontecimentos, então há algo de errado com o casal, algo sobre confiança, sobre segurança ou sobre entrega possivelmente. Quando entramos num relacionamento precisamos saber dos nossos limites, das nossas doenças e assumir as nossas escolhas, por exemplo, eu sei que sou ansioso, então minha ansiedade pode ficar mais grave em alguns momentos quando eu me relaciono com outras pessoas, mesmo assim eu decido me arriscar e me relacionar, assim a responsabilidade será minha de lidar com a minha ansiedade, não é culpa do outro.


Para haver relação é preciso entrega e para que se tenha entrega é preciso se mostrar vulnerável, é este o caminho do coração, não tem outro, não tem como chegar lá com as muralhas da dominação do outro, você tem que responder as minhas mensagens na mesma hora porque eu sou ansioso e se você não responder minha ansiedade vai piorar e a culpa será sua, você não terá responsabilidade afetiva, eu vou ter um treco e você será o culpado. Não é assim que funciona, isto é dominação, controle, vitimização, tudo menos amor. O risco é todo seu! É claro que a pessoa poderá ajudar se ela quiser e puder, mas a responsabilidade está em ela ser livre para poder dizer que não quer te responder a todo momento, porque ela quer ter tempo para ela também, por exemplo, e então? Onde fica a sua responsabilidade com o desejo dela de ter tempo para si mesma, seu ansioso? 


Precisa ser uma via de mão dupla, recíproco. Assim como você pode ser ansioso e desejar a presença a todo momento para não piorar sua ansiedade e entender isto como responsabilidade afetiva, a outra pessoa pode ter o desejo de passar tempo sozinha e este ser o jeito dela e você precisa ser responsável em compreender o distanciamento também. Ou você acha que é mais importante do que o outro? Seu sofrimento, seu desejo, sua vontade vale mais? Seu apego, suas necessidades e o seu amor é melhor só porque une e não separa? Isto também não é amor, é poder, é subjugação, então você não quer um namorado, quer um refém. 


Além da comunicação, outra forma de entender a responsabilidade afetiva é pela ideia de empatia, daquilo bem simples (de outra definição tristemente superficializada pelo Instagram) de tratar o outro como quer ser tratado, de falar o que gostaria de saber a respeito dos sentimentos do outro, de dar os sinais de segurança que gostaria de receber e o conforto que gostaria de ter em troca, veja, eu disse sinais, ninguém dá segurança, porque isto vem de dentro, da autoestima de cada um, mas podemos dar sinais, podemos expressar nossas emoções, uma vez que ninguém adivinha nada, um beijo não significa o mesmo para todos, então é necessário dizer as emoções, as intenções, os planos e tudo mais e também suas alterações, diminuições, caraminholas e crises. Isto se aproxima muito de responsabilidade afetiva quando feito sem esperar nada em troca, sem cobranças e sem expectativas de retribuição, ser porque é e não por comercialismo, querer de volta. Ao mesmo tempo, o retorno deverá vir porque amor é troca, mas este é outro capítulo. 


Responsabilidade afetiva tem a ver, então, com o que você faz, mesmo que o efeito seja negativo de cara, porque será positivo em ampla perspectiva, já pensou descobrir depois de 20 anos que não há mais amor? Evitar falar para evitar confusão ou desgaste, ah ela não vai entender, ah deixa ela ser feliz sem saber disto porque ela tem uma condição psiquiátrica muito delicada e não suportaria, isto não é responsabilidade afetiva, ser responsável é saber como contar, como dizer e como amparar, acolher depois, porque a verdade sempre aparece e porque cada um deve ser responsável por si, de saber o risco emocional que corre ao se relacionar profundamente com o outro. E aí vem a parte final, efetivamente, só podemos ser capazes de verdade, nos responsabilizar por nós mesmos e isto apenas em alguns momentos da vida, pelas nossas reações e pelo direcionamento das nossas emoções, e mesmo assim ainda somos tomados diversas vezes e perdemos este controle. Apenas o autoconhecimento pode levar a melhora na gestão emocional de si e na responsabilidade com o outro.

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