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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

Por que eu não consigo me afastar de uma relação abusiva?

John Bowlby, no fim da década de 40, defendeu sua tese de que os transtornos visíveis na conduta de certas crianças eram uma reação a experiências de vida reais, como negligência, brutalidade e separação, e não o resultado de fantasias sexuais infantis apenas, como diziam os psicanalistas de época, e dedicou sua vida a elaborar a sua teoria do apego. A criança nasce com o instinto biológico de se apegar a quem atue como principal cuidador dela, não tem opção, sejam os pais ou responsáveis carinhosos e atentos ou distantes, insensíveis e inclinados à rejeição ou aos maus-tratos, ela desenvolverá uma estratégia de enfrentamento na tentativa de fazer com que sejam atendidas ao menos algumas de suas necessidades. 


No apego seguro, quando o cuidado inclui sintonia emocional, a ligação se dá ao nível físico e mental, os pais se ligam aos filhos de forma tão espontânea que não percebem como a sintonia se afina, com esta segurança a criança terá mais autonomia para aprender a ter controle em estados de alerta e assim se tornará um adulto que lida melhor com as adversidades da vida. Entretanto, o apego pode se tornar inseguro quando a criança sofre abusos, maus-tratos ou negligências destas mesmas pessoas a quem são depositadas as responsabilidades do cuidado, irradiando para todas as pessoas que agem de forma semelhante, numa espécie de “gatilho”. 


O que complica a situação é que a necessidade de apego nunca diminui, somos seres sociais em nossa estrutura mais primitiva, a maioria das pessoas não suporta viver distante do convívio humano durante muito tempo, quem não se liga aos outros pelo trabalho, por amizades ou pela família, em geral, busca diferentes formas de vinculação, seja por meio de doenças, causas judiciais ou brigas, é aquilo de que qualquer contato é um contato, mesmo que seja na base da agressividade. Qualquer coisa é preferível àquela sensação desolada de irrelevância e alienação.


Isto explica porque você sofre tanto com aquele namorado ou ex marido, mas não consegue se afastar dele, ou sofre com pais narcisistas ou num emprego tóxico e não consegue sair destas relações e lugares (emocionalmente, é claro que tudo isto é multifatorial, muitas vezes não dá para se afastar por motivos financeiros ou culturais e assim por diante), se eles forem os únicos ou mais relevantes pontos de conexões humanas elas se mantém, mesmo quando causam tanto mal, e quanto mal somos capazes de suportar ou ignorar até que tudo exploda, não é?


Outro ponto interessante de se notar é que quando acontece o apego inseguro pelos fatores já mencionados, quando o cuidador principal não é ágil em suas respostas, rejeita ou abusa, as crianças permanecem ressentidas e exigentes ao se aproximarem novamente do cuidador, elas não retornam mais ao apego seguro, elas aprenderam a se relacionarem sem sentir, o que é chamado de apego evitativo. Assim, as crianças agem como se nada as afetasse, como se não precisassem de ninguém, elas não choram quando a mãe se afasta e as ignoram quando retornam, mas é claro, que isto não significa que elas não se afetam de fato. Quantos adultos você não vê agindo da mesma forma em suas relações? Quantas pessoas que não falam de seus sentimentos para os parceiros ou fingem que não precisam de nada disto de amor ou “namorinho”?


O apego ansioso ou ambivalente pode ser outra forma de manifestação do apego inseguro, neste a criança sente, mas não se relaciona, então elas choram e chamam a atenção, porque apenas desta forma conseguem o cuidado, passam o tempo angustiadas pela presença ou ausência da mãe ao ponto de não apreciarem a sua companhia, ficam o tempo todo focados de forma passiva ou furiosas. Muitos adultos também agem desta forma em suas relações, não é? São as conhecidas pessoas dramáticas ou até ganham títulos de histéricas, ou homens ciumentos e possessivos que quando estão próximos se preocupam tanto com a presença que não aproveitam do momento e (pensam que) só conseguem atenção agindo desta forma. 


Ainda existem os casos em que as formas de apego inseguro se misturam, a mãe é, ao mesmo tempo, necessária para a sobrevivência da criança e uma fonte de medo, estas crianças não conseguem se aproximar, nem desviar a atenção e nem fugir. São as crianças que, quando veem os pais, são incapazes de ficar perto deles ou evitá-los, então elas desviam o olhar e ficam engatinhando de um lado para o outro, ou ficam paradas com as mãos para o alto ou se levantam para saudar o pai ou a mãe e depois caem no chão novamente, por não saberem quem merece confiança ou a quem pertencem, este apego é chamado desorganizado, ou seja, um medo sem solução. 


O que acontece é que crescemos e estas estruturas de busca pela segurança permanecem, continuamos projetando nossa necessidade de apego nas relações e nas instituições, seja no trabalho, na escola, na igreja ou mesmo nas redes sociais, agimos como aquele bebê que chora na ausência da mãe ou que se ressente de sua presença, de forma mais refinada, claro (e inconsciente). Por isto existem as crises de ciúme, muitas das dificuldades de relacionamento amoroso e familiar, de solicitação de atenção, de isolamento, de dificuldade de afastamento dos abusos e da negligência em geral, daquilo de passar por cima de si porque ainda não consegue ficar sozinho, do esforço em suportar algumas situações nocivas e por aí vai. 


E como eu faço para tratar da minha dificuldade de apego? Claro que eu vou responder faça terapia, né minha filha, procure um psicólogo, muitas vezes um psiquiatra especializado em traumas também pode ajudar bastante, o que é necessário fazer é reaprender a amar, se reconectar com seu corpo, melhorar sua autoestima, tratar os traumas que levaram a estas distorções do apego, aprender a confiar na própria companhia, não como vazio e solidão, mas preenchida de quem se é, e para isto é necessário se conhecer melhor, saber quem é e do que gosta para se tornar uma boa companhia para si mesma, completa e atualizar o significado de se relacionar, para ser uma forma de contribuir no processo de individuação, de evolução pessoal e conjunta e não para tapar buracos ou feridas emocionais infantis.


Fonte: O corpo guarda as marcas: cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Bessel Van Der Kolk. 2020.

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