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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

O desejo de ser desejado

Lacan escreveu que o que desejamos no outro é que ele nos deseje, desejamos o desejo do outro, nada mais, o que queremos, na verdade, é sermos queridos, desejados, não importa tanto o status do relacionamento, o amor que se sente, se for sentimento, não vale tanto assim quanto o compromisso materializado pela aliança no dedo ou as promessas públicas feitas para os homens e o divino. Veja só, se ele olhar para outra mulher tudo pode perder o sentido. Vivemos num mundo de tantas inseguranças que, mesmo após as prolongadas reafirmações dos pactos sagrados, ainda assim, curtir uma foto da morena desconhecida de biquíni ou do musculoso sem camisa da academia causa grande comoção nos relacionamentos a ponto de ruir toda a tentativa de construção e o trabalho feito, tudo perde o valor e o outro se torna central, o objeto central do afeto perdido. Será que tem algum problema que uma pessoa comprometida tenha desejos por outras? Que olhe para os lados? Será que aquela máxima que diz que quem está satisfeito não tem interesse em mais nada é verdadeira? Ou será que temos que deter o controle e o foco do desejo dos nossos parceiros de vida a todo instante?

É bem claro de imaginarmos a tomada da insegurança nestas situações, a questão mais profunda que fazemos é o que chamou a atenção no outro que eu não tenho o suficiente para oferecer ao meu parceiro, me falta corpo ou não sou interessante o suficiente? Então eu não o satisfaço em sua completude? Ele precisa de algo que vai além de mim ou do que eu possa ter para dar? Ele é mais do que a relação? Estas questões são importantes para compreendermos o caminho da baixa autoestima que a frustração pode levar, a partir disto entramos em contato com aquela parte que tenta desesperadamente sustentar o desejo alheio, que trabalha em prol do outro em vão. Mas nem sempre chegamos a este ponto tão facilmente, antes de tudo projetamos a sombra, a insegurança se torna raiva pelo outro e então ele passa a não prestar, a ser imoral e até mesmo um traidor, o que é bem mais fácil do que se perguntar porque me incomodo tanto ao encarar certos fatos. Ora, eu posso desejar quem eu quiser, mas estou contigo [preso], e isto não é o suficiente? É uma frase bem comum que expressa o amargor daquilo que chamamos de realidade, aquele com quem estamos comprometidos está aqui no real, no material, no cotidiano, rendido e não há mácula maior para estragar a fantasia do que a boa e velha convivência com o outro. Dizem que o que estraga um relacionamento é ir morar junto com o parceiro. Então é bastante injusto tentar competir com a fantasia, com a moça do biquíni ou o rapaz da academia, inalcançáveis e por isto perfeitos, quando o que temos é a dureza da vida real, com secreções e odores fétidos, com bafo e remela, com inseguranças e medos, preocupações financeiras e picuinhas de vizinhos. Não há paixão que se sustente. 

Por isto é que o desejo terá preferência pela fantasia e quando ele se tornar real perderá bastante sua graça, também é por este motivo que olhamos para os lados quando já temos bem definido nossas realizações amorosas, se tal coisa é traição ou deslealdade eu não sei, mas apenas os olhos da paixão nos cegam para o mundo, o amor enxerga, ele não é cego, ele vê além. Depois da paixão vem o amor, então o amor é calmo, mas também é um trabalho, uma construção diária e que exige se debruçar sobre as próprias inseguranças, o amor é o que temos de mais real e cotidiano, ele é quem deve suportar o desgaste do tempo e das mais variadas situações, da mudança dos corpos na velhice, da construção do lar, da miséria e da doença, das ideologias e tudo mais que tiver. Amar é compreender a materialidade do afeto, é abrir mão do controle porque se confia, é sair do modo de funcionamento da fantasia e mergulhar no exercício prático cotidiano e interminável de se jogar de um precipício sabendo que o outro vai te pegar lá embaixo.

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