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  • Foto do escritorPsicólogo Renato Orlandi

A falácia da “terapia em dia”

Será que é possível ter a terapia em dia? Pronto, acabaram-se as demandas da vida, já resolvi todos os meus problemas, tudo que me fazia mal, já repassei toda a história da minha vida a limpo, resolvi todas as questões de infância, as intergeracionais, deliberei sobre todas as minhas relações, desenvolvi todos os aspectos do meu ser, sejam materiais, sociais e subjetivos e também das funções do ego. Integrei todos os conteúdos possíveis à consciência, analisei e ampliei infinitas séries de sonhos, desenvolvi toda a potencialidade da minha inteligência emocional, conquistei todos os meus objetivos cognitivos, afetivos, relacionais e de comportamento, fiz todas as coisas que eu tinha medo, me sinto um adulto completo, confiante, independente, realizado em todos os mais diversos setores da vida, trabalho, social, amoroso, espiritual, orgânico, cognitivo e familiar. 


O futuro não me assusta, tenho planos, sei meu lugar no mundo, minha vocação e a vivo intensamente, abri mão completamente do controle e fico tranquilo vivendo um dia de cada vez sem me preocupar com o que virá, já deixei meu legado no mundo, adquiri sabedoria sobre a vida e a morte e reestabeleci toda a confiança e fé no mundo e na humanidade, encontrei meu lugar de servidão e de iluminação. Não sou sequestrado por mais nenhum pensamento ou afeto, tenho sempre equilibrados a ansiedade, a tristeza e os meus desejos, nada mais afeta, nada mais ressoa, nada mais se identifica comigo, nada mais é projetado de mim e nada mais é somatizado, meu corpo se tornou reflexo da minha mente e também está em perfeita ordem, saudável e produtivo.


Já deu para perceber porque ter a terapia em dia é uma falácia, não é? Mas vamos lá, antes de qualquer coisa, o que seria uma falácia? Este termo vem do latim “fallere” que significa enganar, se trata de um raciocínio errado com aparência de verdadeiro, é um argumento logicamente incoerente, sem fundamento, inválido ou falho na tentativa de provar eficazmente o que alega. Desta forma, ter a terapia “em dia” é algo impossível de se realizar, primeiro porque o processo de individuação, descrito superficialmente no primeiro parágrafo, não se alcança, o máximo que conseguimos fazer dele é nos aproximarmos, este é nosso objetivo, e segundo porque sempre haverá vida para frente e novos acontecimentos e novas situações e isto irá esbarrar em partes nossas que ainda não conhecemos ou trabalhamos em terapia. 


A única possibilidade de a terapia ficar em dia é no momento em que partimos desta vida! Muito poucos fazem terapia para se aprofundar no autoconhecimento, infelizmente, a grande maioria das pessoas só buscam terapia quando algo já saiu do controle, está inflamado e causou consequências. Para estes, que acabam chegando na terapia com objetivos bem definidos, poderão eventualmente resolver suas chagas mais expostas e encerrar o processo, como se não houvesse muitos outros conteúdos latentes, mas sempre existem armadilhas prontas para disparar e gatilhos aos eventos futuros da vida ou já em pleno desenvolvimento, mas ainda ao nível inconsciente, despontando no horizonte.

 

Esta expressão, terapia em dia, é usada coloquialmente, para se referir a alguém que está frequentando regularmente sessões de psicoterapia. Nesse contexto, significa que a pessoa está mantendo uma rotina consistente de encontros com um profissional de saúde mental para tratar questões emocionais, psicológicas ou problemas específicos que possam estar enfrentando. De certa forma, embarcando neste uso da expressão, é superimportante manter a terapia em dia, frequentar as sessões na frequência prescrita pelo profissional, geralmente semanal, mas pode variar dependendo da situação ou do momento, podendo até ser diária, várias vezes por dia como pode acontecer em internações, quinzenais, mensais ou maiores ainda para acompanhamento, prevenção de recaídas e revisões do trabalho feito. 


Além disto, não basta comparecer nas sessões, é preciso refletir, entrar em contato com as emoções, ser crítico e honesto consigo mesmo, com compaixão e vontade de fazer diferente. Outra forma de uso coloquial de uso desta expressão, estou com a terapia em dia, diz respeito ao sentimento de orgulho que o indivíduo tem por investir em sua saúde mental e buscar crescimento pessoal, principalmente quando começa a observar os resultados deste trabalho. Assim, se torna uma demonstração de força e coragem por enfrentar os seus problemas e traumas e encontrar maior compreensão de si e do mundo ao seu redor.


É claro que também existe um perigo nesta fala, estou com a terapia em dia, quando pensamos nos relacionamentos tóxicos, nas formas de violência psicológica e abuso moral, seja pelo gaslighting, pelo apego ou qualquer outro modo de intimidação, humilhação, controle ou ameaça ao outro. Saiu recentemente uma reportagem de revista dizendo que homens recebem muito mais curtidas nos aplicativos de namoro quando escrevem em seu perfil que fazem terapia, como se isto significasse alguma vantagem ou posição, a promessa de que é um ser humano melhor por estar num processo de análise, não necessariamente isto é verdade. 


Inclusive é possível e bem usual adotar o mantra “terapia em dia” para reforçar estas formas de violência, como se a pessoa fosse incutida de alguma sabedoria exclusiva e superior confirmada por falas recortadas do seu terapeuta ou de interpretações distorcidas do que acontece em seu processo de fato, isto é muito comum para se projetar no outro, em uma relação, as responsabilidades que deveriam ser ou compartilhadas ou tomadas para si. A ideia é a seguinte: porque faço terapia e a minha terapia está em dia, então você está errado, precisa se tratar, seus sentimentos são confusos ou valem menos, tudo é sua culpa, sua memória e suas percepções estão equivocadas e você ainda precisa de muito para compreender segredos que eu já sei.


Então como saber se o alecrim dourado ou a florzinha do campo está com a “terapia em dia” mesmo? Primeiro que quem está progredindo bem numa terapia não terá necessidade de inflar o ego, isto é, não precisará dizer aos quatro cantos que está “em dia”, mesmo que fale de sua terapia, porque ele ou ela estarão mais preocupados com o seu processo, ou em te mostrar como suas descobertas mudaram sua vida, eles ficam mais próximos do “testemunha da terapia” e te estimulam a fazer também do que convencidos de um suposto sucesso de tratamento, estou “terapeutizado”, “analisado” e “psicologizado”. Isto vale também para aqueles que “já fizeram várias terapias, de todas as formas, abordagens e a vida toda”, este já se tornou um semideus! Quem faz terapia sabe que não é um mar de rosas lidar com emoções desconfortáveis, reviver traumas, confrontar padrões de comportamento, vencer resistências, promover mudanças, se perceber vulnerável, enfrentar aspectos menos positivos de si, sem contar que exige um investimento de tempo e dinheiro para isto acontecer, quem está em uma jornada de autoconhecimento mais honesta irá te dizer estas coisas também. 


A verdade é que a terapia, por si só, não tem fim, enquanto houver prontidão de quem a procura ela nunca estará em dia, neste aspecto não falamos de tratamento psicológico, mas de análise pessoal, saímos da concepção biologicista da medicina (antiga) que só se preocupa com doença e cura e ampliamos para a concepção de desenvolvimento e aproximação da alma, da essência do ser. A terapia deixa de ser para tratar um “problema agudo” e passa a ser para ampliar as possibilidades da vida. E preciso reforçar, a vida não é um problema que precisa de tratamento, a vida é movimento, é jornada, é a manifestação da natureza, e com ajuda de um profissional podemos passar pela vida com outro olhar, um que nos ajude perceber sua beleza, mesmo nas crises, em vez de transformá-la em lutas e guerras constantes, podemos fazer as pazes com ela. Por isto tenho orgulho de dizer que não tenho a “terapia em dia”, estou bem longe, porque cada dia que passa o “em dia” se torna o dia anterior e cada dia eu descubro algo que me deixa menos “em dia” com a minha terapia, e é por isto que ela funciona, se eu pensasse que está tudo “em dia” o que eu falaria na próxima sessão?

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